A pintura de Ana Maria Lampreia impressiona, á primeira vista, pela riqueza de sugestões que suscita. Dizer isso, entretanto, é dizer pouco de uma artista que redime de maneira muito original uma proposta estética das mais sérias.
Não é nova discussão . Nem por isso chegou a uma definição. O fato é que tendências as mais variadas vem se interpondo ao longo dos anos – complementando-se aqui, antangonizando-se ali – na tentativa de remediar o que parece irremediável aos olhos de artistas e de críticos. Estamos nos referindo á suposta limitação da tela como suporte da manifestação artística.
Na busca frenética de uma formalização nova para a arte pitórica, a tela vem sendo amiúde responsabilizada pelo “beco sem saída” em que se encalacrou a pintura. E diante de tal impasse não vacilam em negar seus componentes básicos, em favor de pressupostos estéticos que vacilam entre o arbitrário e a iconoclastia pura. Entre os profetas da falsa renovação não se entende senão a simples troca em detrimento da soma.
Não é, felizmente, o caminho trilhado por Ana Maria. Sua busca mostra-se lúcida e conseqüente. Os quadros de sua nova fase exibem uma estrutura, onde a janela é a chave. Linha de fronteira ou ponto de intersecção, ela se coloca sutilmente entre o dentro e o fora, o interior e o exterior, a natureza morta e a natureza viva.
Os espaços em oposição (ou justaposição) marcam sobremaneira pela identidade dos elementos sompositivos. Lá fora repetem-se ad-infinitum as silhuetas de serras recortadas contra o céu, adornadas de altivas araucárias. Ao
passo que dentro repartem-se, nos móveis escassos de cômodos silenciosos, solitários bules de esmalte, vasos de simplória delicadeza, objetos frios e estáticos que sublinham a solidão ancestral da casa vazia.
Difícil resistir á tentação de interpretar, á medida que os objetos de uma e outra margem assumem caracteres modelares, arquetípicos. Transfiguradas as formas compositivas em símbolos polisignificativos, ocorre de imediato o hipotético conflito campo-cidade, urbe-natura. Ou o galo empoleirado sobre o radio antigo constitui – conjunto e componentes – as formas tão somente, necessárias ao equilíbrio da composição?
Como se temesse tornar-se vítima da própria magia, o criador não se retrata. A vida invade a solidão da casa na forma de flores enfeixadas nos vasos. De trepadeiras rústicas, fieiras de operárias formigas, esvoaçantes borboletas coloridas, gatos atentos e ensimesmados, o galo madrugador sobre o radio, a maçã estirada no prato, a banana madura iluminando o tampo escuro da mesa.
De fora vem a vida. E lá fora viceja a liberdade. É o que parece revelar cada um desses objetos-símbolos. E acaso não é esta, também, a mensagem decodificada no projeto formal? A junção das quatro telas, originando as janelas propriamente ditas, explicita a possibilidade. E mais que a possibilidade, a liberdade de multiplicação do espaço, tela após tela, até o infinito. A liberdade objeto surge, em outras palavras, como resposta á liberdade subjetiva, tema subjacente ao processo manifestativo.
Diz Fernando Pessoa, o poeta português, que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. E Ana Maria corrobora, não em palavras mas em recursos plásticos. Com suas janelas, ela mostra que é possível fazer uma pintura original e enriquecedora, utilizando para tanto a velha tela, o tradicional pincel de pelos e as mesmas tintas. Basta acrescentar um pouquinho de criatividade.
Luiz Galdino
Professor e Escritor
Autor de “Itacoatiaras: uma pré-história da Arte no Brasil”
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